Os professores eram apaixonados por ela, até aqueles que não gostavam de literatura. Entretanto, o que eu não conseguia entender era para onde ela ia todas as tardes depois da escola. Ela subia uma rua enorme e uma ladeira também enorme. Que eu não subiria todos os dias, pois ficava fatigado logo logo. Mas ela subia.
Um dia eu a segui. Pedalei até o final da rua. Uma ruela estreitinha e escura que me dava arrepios. Ela andava com pressa ou era o seu jeito de andar mesmo, até hoje não sei! Mas sei que ela se perdia na escuridão como uma coruja dona da noite. Meu medo não me permitia acompanhá-la. Sempre fui um menino covarde. Confesso!
Fui à casa de minha avó antes de ir a minha. Vovó Izildra, como sempre, ranzinza, não perguntava, brigava logo “Isso lá são horas?! Menino!? Cadê tua mãe que não cuida de Você! Na minha época ainda sabiam criar os filhos...” e gritava gritava enquanto Vovô Fabiano- ria como se falasse somente para si. Mas eu via um ar de aprovação por parte de meu avô. Mesmo sem dizer muitas palavras, Vovô Fabiano era esperto. Na juventude, fora professor de Latim. Não sei bem o que era isso na época, mas ele era.
Encostei minha bike no portão e fui até a cadeira do outro lado da rua que vovô estava sentado. E comecei a perguntar a ele, se ele sabia alguma coisa daquela menina que há tempo estava no meio de todos, mas ao mesmo tempo estava tão sozinha.
- Você está falando de Velzabel? Era esse o nome dela e eu nem sabia. Fazia poucos dias que eu havia me matriculado na mesma classe daquela pessoa estranha.
- A pequena deve ter seus motivos para se esconder. Vai ver não gostou de você! E assim vovô com suas mãos em minha cabeça, sorridente como sempre, dizia:
- Deixe a pequena em paz. Um dia você saberá alguma coisa dela. Vá para casa que sua mãe deve estar preocupada. E nas condições em que ela se encontra é bom mesmo, não preocupá-la.
Vovô falava de mamãe em condições ruins porque quando Velzabel apareceu em nossas vidas, foi no momento em que minha mãe estava muito doente. Alguns diziam que era câncer no útero, outros nas mamas, outros especificavam outros órgãos... Porém lá em casa papai preferira dizer apenas que “Ela está doente!”. E assim tratamos mamãe apenas como uma mulher doente. Em todo o verão foi assim naquele ano. Porque onde nós morávamos só tinha verão. Até as noites eram quentes. Só se sabia que era noite porque ficava escuro. Assim era Irauçuba em minha infância. Acredito que até hoje deva ser assim. Há trinta anos não vou aquele lugar quente e sombrio de minha infância.
O importante é que lá vivi os poucos anos ao lado e nos seios de mamãe. Minha vida era simples até minha primeira década. E entre esta e a segunda, duas mulheres povoaram minha mente nos anos de minha primeira infância: Maria das Dores (a mamãe) e Velzabel (não digo meu primeiro amor, talvez minha melhor companhia nos meus primeiros anos de homem, em momentos de dor.)
Assim eram os meus dias: pela manhã ia à escola. Gostava porque era um lugar intrigante, mais ainda pela presença de Velzabel. Nas aulas de Português ela lia em voz muito alta, roca, quase a pôr medo em quem ouvia sua leitura. Nos textos de Álvares de Azevedo ou de Alphonsus Guimaraens ela lia com tanta intensidade, como se tivesse ao lado de Ismália quando esta estava caindo da torre que o tal poeta dizia na poesia. Nos textos de Azevedo, ela falava da morte da amada do poeta como se chorasse, como se ela também tivesse perdido alguém na vida.
Então eu descobri uma coisa sobre aquela menina. Ela só gostava de ler livros cujos temas eram: solidão, tristeza, morte, compaixão. E eu sabia disso, porque passei a segui-la quando ia à biblioteca. Ela não sabia. Até hoje, ela não saiba que durante alguns meses de minha vida passei a segui-la como um cão de guarda, a dois lugares que ela gostava de ir: a biblioteca e a Igreja.
Esse último lugar eu nunca entendi porque ela gostava de ir. Num seminário na aula de História ela falou sobre a Igreja na época da Idade Média- e pelo o que ela dizia, não gostava de padres. Então pensei no fato e estranhei. Mas estranho ainda era que ela ia às missas só depois que a missa acabava. Quando todos os fiéis saiam, ela entrava. E ficava horas olhando a imagem de Jesus Cristo, como se tivesse falando com Ele e ouvindo o que Ele teria a lhe dizer. Dois anos após eu fui descobrir porque ela agia assim.
Ela era uma leitora a dar inveja a qualquer professor de português: professor Teófilo que o diga! Ele era o mais importante professor da escola, mas não curtia muito ler. Talvez as pessoas confundissem anos de serviço por importância intelectual. Todavia, eu gostava muito de acompanhar as leituras de Velzabel. Às vezes, embaixo das mesas da biblioteca eu viajava ouvindo “As Viagens de Gullever”, ria que nem desesperado assistindo a filmes de comédia nas narrativas de Machado de Assis como: “O Alienista” ou “A Igreja do Diabo”. E cresci recitando algumas falas de Brás Cubas. Ela adorava Machado. E com um tempo eu aprendi com ela a gostar deste autor.
Quando ela lia, sempre era em voz alta. Não incomodava ninguém porque a biblioteca ficava a maior parte do dia vazia. As outras meninas não gostavam dela por isso. Aliás, eu nunca vi em Velzabel um par de pernas que me seduzisse, um olhar ou cabelos que me despertasse algum desejo de menino. Ela sempre trajava preto. Cabelos longos cacheados como se tivessem em ondas mesmo contra os ventos ou a poeira constante em Irauçuba. O que era encantador nela, que povoava meus sonhos e do nada eu despertava eram: o sorriso largo e a voz que me embalava na imaginação que eu tinha ao ouvi-la ler como se fosse para mim. Isso fazia dela a menina mais especial da minha vida após a minha mãe. E eu só fui perceber esse encanto por ela anos depois que eu a perdi.
Crescemos assim. Pela manhã escola. As tardes à biblioteca, a exceção de quintas. Que íamos à missa. Sem ela saber. Lógico! E a noitinha ela descia aquela ruela escura que eu não me atrevia a acompanhá-la. Então ia a minha casa. Lá encontrava não no portão a eu esperar. Mas eu ia ao encontro dela num quarto, escuro. Às vezes sei que também chorava. Que no fundo do coração sonhava como o Álvares de Azevedo de Velzabel, entretanto não me dizia nada de sua dor. Porque em meu coração eu sempre via um sorriso lindo da mulher que me deu a vida e que eu lembro todos os dias até hoje. Ela cabelos longos e negros e lisos como uma curva sem buracos. O olhar negro e brilhante, moribundo como a noite. Ela minha mãe.
Uma triste manhã de domingo de 24 de dezembro ela partiu sem ao menos me dizer adeus. Papai inconformado chorava e amaldiçoava os santos e os médicos. Vovô Fabiano gritava em sua dor. E pela primeira vez em minha vida em 40 anos de existência eu vi vovó Izildra quieta, sem lamentar, atônita, sem proferir ou amaldiçoar um santo. Eu não sabia o que fazer. Só sei que sai correndo pela cidade a pé. A procurar um lugar para me esconder como se não quisesse entender que eu havia perdido-a para sempre. Sempre! Corri pelos becos e pelas ruas quentes daquela cidade do sertão. Quando dei por mim, estava em frente a uma casinha pequena de dois cômodos. Uma salinha pequena com um caixote bem no centro com dois livros sobre o mesmo. Uma parede com imagens de meninas com as mãos para cima como se tivessem pedindo para alguém abraçá-las. No outro cômodo: uma mesa sem nenhuma coberta. Paredes de barros a mostra. E lá no pequeno quintal, uma pessoa recitava uns versos como se tivesse a rezar uma ave-maria. Era ela: Velzabel.
Ela me olhou fixamente com aquele olhar negro que nunca mais esqueci em minha vida. Eu não sabia dizer uma só palavra. E ela pela primeira vez em anos de convivência falou comigo.
- Ela também foi embora?
Eu ainda atônico parei e lhe disse com os olhos cheios de lágrimas. Você não sabe o que é perder alguém que esteve sempre com você.
Ela com olhos mais fixos ainda nos meus.
- Você não sabe o que é passar a vida inteira esperando por alguém que um dia você sabe que passou em sua vida. Você não sabe o que é viver todos os dias a esperar por alguém, que não vem lhe ver ou lhe buscar para ser sua filha. Você não sabe o que é esperar por um milagre.
Dessa forma, eu descobrir o motivo e a estranheza daquela menina de olhar triste. Depois, meu avô me disse que ela havia sido abandonada por seus pais e fora criada pela vida e pelas casas que Deus havia colocado em seus caminhos. Aquela pobre moça teve uma vida mais difícil. E era mais corajosa do que eu sempre fui.
Quando mamãe morreu papai não quis mais ficar naquele lugar. E fomos embora para o sul do país em busca de melhores condições de vida, de trabalho e para esquecer mamãe. Ele não me disse isso, mas eu já sabia. Já estava começando a entender as coisas. Já estava começando a viver. Ele queria esquecer mamãe e eu no fundo Velzabel. Na verdade, nunca mais voltei àquele triste lugar porque minhas ismálias caíram dos céus e caíram nos mares da morte. Mamãe morreu de câncer e Velzabel de uma fome e uma grande seca que houve em Irauçuba.
Sem elas aprendi a viver sozinho e a imaginar ouvindo minha própria voz e meu coração, mesmo que nunca tenha tirado elas de dentro dele.
Cristiane de mesquita Alves 16:10 23 de fevereiro de 2011.